segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Incongruências

Ontem andei por uma estrada sem caminhos
E num destes, vi uma luz que não existia
E na não existência conheci quem eu já conhecia
Na madrugada do meio-dia

Ontem eu vivi uma vida que ainda não nasceu
Mas que tinha um rosto tão lindo quanto a morte
E morrendo em seus braços caí num poço
Onde a água era densa como a sorte

Ontem eu tive a oportunidade de não ter nada
E não tendo, chorei pelo muito
As lágrimas pareciam areia numa ampulheta furada
Onde o tempo passava sem ser marcado

Ontem eu olhei essa marca a uma distância secular
E no segundo do terceiro
Percebi que o receio era tão grande
Pura falta de sorte daquele que chega em primeiro

Ontem eu percebi que era tímido
Incomunicavelmente sozinho na multidão
E nessa timidez juvenil
Senti-me um rebelde sem causa

Ontem a causa era justa
Tão ou mais que o seu julgamento
Que me leva ao fundo em um segundo
Mas que por um instante não lamento.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Cavalo de cabo de vassoura - parte 2


Era apenas um cavalo de cabo de vassoura e estava definhando. Estava definhando tão rápido que o próprio não se dera conta do tamanho do estrago. O reino pelo qual ele caminhava com tanto entusiasmo não lhe pertencia, pois ele era apenas um cavalo de cabo de vassoura. Cavalos de cabo de vassoura não possuem reinos, no máximo, vivem neles, fazem parte do folclore local, mas em suma, não são donos, nem mesmo em parceria com outrem. Cavalos de cabo de vassoura sequer possuem baías ou estábulos, cochos ou selas. Não possuem nada.

E a rapidez com que as coisas lhe tomavam de assalto, a mesma rapidez que provocava a ilusão da luz cinza no fim do túnel, foi a mesma que o ajudou a definhar sem perceber. Essa rapidez o ajudou no processo do encontro e também no da despedida. Mas e agora? Por ser apenas um cavalo de cabo de vassoura o que lhe restaria? Seu mundo estava ruindo assim como seu próprio ser, sua essência. Era apenas um cavalo de cabo de vassoura.

Era apenas um cavalo de cabo de vassoura, e cavalos de cabo de vassoura não são mágicos. Não me lembro de sequer um desenho ou conto no qual um destes fazia alguma magia, fazia algum encantamento ou lançava não de alguma poção, varinha de condão ou mesmo um truque de circo. Cavalos de cabo de vassoura não são mágicos. E, se naturalmente a magia ali faltava e não lhe dava perspectivas de melhora, algo de muito ruim estaria por vir... E o tempo passou...

O tempo que para ele não existia passou. Mas como uma coisa que não existe passa? Como pensar que o senhor das horas e guardião do passado, presente e futuro, que para ele nada representava, pois era apenas um cavalo de cabo de vassoura, poderia agora lhe fazer alguma diferença? Como?

Parafraseando um gênio, os loucos, aqueles que são loucos o bastante para acharem que são capazes de mudar o mundo (e realmente são os que mudam), têm uma característica em comum: são atemporais, não se preocupam com o tempo, não se preocupam com os problemas, apenas vivem... E vivem intensamente. O passar do tempo que não existe, a loucura da irrealidade do status quo e a condição de uma existência efêmera causaram nele, o cavalo, um instante infinitamente pequeno de genialidade. Uma genialidade infinitesimal!

Certa feita, ainda no reino da Torre, quando se deitara em seus panos (cavalo de cabo de vassoura não tem baia) teve a permissão de se sentir plenamente num êxtase tão claro quanto o dia, e nesse profundo suspiro de resiliência, onde não se tem a noção exata do que é palpável e do que é etéreo, ele viu uma criança. Uma criança a qual ele conhecera naquele momento, mas de uma intimidade milenar (para cavalos de cabo de vassoura o tempo não existe). Muito antes de existir de fato, ela estava ali, de pé por entre as grades de um portão. 

Continua...

A continuação deste texto será lançada na próxima semana. Quem quiser acompanhar a primeira parte do conto acesse: http://caosfilosofico.blogspot.com/2011/04/cavalo-de-cabo-de-vassoura.html

Anderson Mendes Fachina

Tempo

“Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem poderá aprender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.”


As palavras iniciais de Santo Agostinho no livro XI “O homem e o tempo”, item 14 “O que é o tempo?”, constante de sua principal obra “Confissões”, traduzem fielmente aquilo que a grande maioria de nós pensa acerca da questão do tempo, ou seja, quase nada. Quando tratamos pessoalmente a questão, dizemos que o tempo é infinito, que não pode ser medido, que tem importância para nós enquanto encarnados, etc., etc. e etc. Mas, quando a questão foge ao parâmetro pessoal e nos vemos na qualidade de expositores do tempo, enxergamos que a questão é muito mais profunda que a superficialidade que empregamos outrora. Não que essa superficialidade seja inadequada para tratar da questão, mas quando evocamos nossa capacidade de reflexão e nossas concepções filosóficas começam a atuar sob nossa mente, chegamos a uma conclusão também superficial, mas, reveladora: há muito mais a se pensar sobre o tempo do que podemos neste momento. Pronto, encerramos então a questão: O tempo não deve ser discutido de maneira mais profunda porque não dispomos de capacidades que o possam delinear como tal. Certo? Não?

Para aqueles que se dispuseram a pensar sobre o tempo, vemos que o simples encerramento da questão não é caminho louvável, já que as concepções filosóficas que carregamos conosco não nos deixam outra saída senão filosofar ainda mais, investigar ao máximo a questão, para saciarmos nossa sede. No capítulo VI da Gênese dizem os espíritos:

“Como a palavra espaço, tempo é também um termo já por si mesmo definido. Dele se faz idéia mais exata, relacionando-o com o todo infinito. O tempo é a sucessão das coisas. Está ligado à eternidade, do mesmo modo que as coisas estão ligadas ao infinito. [...] Dentro desta ordem de idéias, fácil nos será conceber que, sendo o tempo apenas a relação das coisas transitórias e dependendo unicamente das coisas que se medem, se tomássemos os séculos terrestres por unidade e os empilhássemos aos milheiros, para formar um número colossal, esse número nunca representaria mais que um ponto na eternidade... [...]... a eternidade não é suscetível de medida alguma, do ponto de vista da duração; para ela, não há começo, nem fim: tudo lhe é presente. Se séculos de séculos são menos que um segundo, relativamente à eternidade, que vem a ser a duração da vida humana?!”
Num primeiro momento, numa observação bem rápida, percebemos que os espíritos procuram encerrar a questão fechado o tempo como sendo uma sucessão de coisas. Mas, se colocarmos nossos olhos sob a questão que encerra o exposto, vamos voltar a nos perguntar: o que é o tempo então, se sendo uma sucessão de coisas ele representa quase nada para a eternidade? E vemos que, na verdade, os espíritos dizem mais do que as palavras traduzem.

Para encerrar a questão, ou melhor, começá-la novamente em outros níveis, voltemos a Santo Agostinho. Diante de sua reflexão, Agostinho invertia a perspectiva acreditando que nós não vivemos dentro do tempo e sim ele habita em nossa mente. Para fundamentar sua conclusão, utilizou da lógica de que o que existe, existe, ou seja, é. Então pensou: Se o passado já passou, não o é mais, então não existe. Se o futuro ainda não chegou, não o é ainda, então também não existe. O que fica então? O presente? Também não, porque ele só existe em se comparado ao passado e futuro.

Dentro desta perspectiva, onde chegamos a constatação agostiniana de que o tempo como o concebemos não existe, nos posicionamos em tese ainda mais preocupante. Se não há presente, futuro ou passado, o momento que passamos agora é o mais importante de toda a nossa existência. E assim o sendo, deve ser encarado como tal. O que estamos fazendo com o nosso tempo então? Vivemos dentro da lógica de que tudo é tão precioso dentro de nossa evolução que não há como deixar de ser espírita por um só minuto. Façamos então que nosso tempo seja construído da melhor forma possível, sempre no caminho do bem.

Fontes: Santo Agostinho. Confissões. Nova Cultural, São Paulo: 1999, pág., 322-340 e A Gênese – Os milagres e as predições segundo o espiritismo. Capítulo VI pág. 103-107.

Anderson Mendes Fachina

Texto originalmente publicado no site Rede Amigo Espírita em 19 de janeiro de 2011: http://amigoespirita.ning.com/profiles/blogs/tempo-1