segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Habitué

Ela sempre tem o sorriso mais lindo no rosto. Sempre tem uma energia muito bonita quando sorri. É simples, complexa, profunda e inexata. Carrega em seu semblante as marcas de uma pessoa que tem coisas pra contar, mesmo que ela se negue a contar essas coisas. Tem um amor no coração muito grande. Gere sua cria como quem a defende dos animais mais perigosos. Aliás, essa foi uma revelação que a sua meiguice escondia por entre os cabelos encaracolados.

Num certo dia, numa ponte, conheceu um jovem. Um jovem que foi premiado pelo universo. E o encontro, inusitado, foi banhado pelo futuro, levado pelas correntezas e incertezas do que há por vir, levado pelo encanto do afronto, do embate, da resenha.


Caminha pelo mundo prestando atenção em cores que nem sabe o nome. Mas isso não a impede de criar, de tentar, de inovar, de sentir em suas mãos o poder da criação. Mesmo que esta dure apenas poucos segundos. Ela não pára. Não consegue manter suas mãos em repouso, mesmo quando a mente já não quer mais, mesmo quando o corpo já não agüenta. E olha para aqueles aos quais acolhe com seus ensinamentos como quem enxerga agulhas em um palheiro, como quem vê luz num túnel longo, frio e escuro. E todo momento ela enxerga.

Não tem a sofisticação como um habitué, motivo pelo qual essa palavra não lhe caberia se não fosse pronunciada pela própria. Mas como as congruências caminham lado a lado, as excentricidades se dão ao luxo de acontecer, já que nada pode ser tão fácil assim. E dizem que quando uma situação se repete, tem-se a certeza de que acontecerá novamente. Estamos esperando.

Do ponto de vista simples, ela o é da maneira mais clara possível. Do ponto de vista complexo, vê-se que sua identidade, digamos, menos explícita, é algo a se considerar a ponto de não haver nenhum tipo de subestimação. Aliás, quando isso ocorre, há a possibilidade enorme de erro. E ela não os admite... É perspicaz. E tenho dito. E tenho visto. E tenho imaginado esse sorriso.


Anderson Mendes Fachina

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Da mihi castitatem et continentiam, sed noli modo (2)

continuação...

Ainda não havia dormido, mas os pensamentos começavam a serenar, a ponto de conseguir relaxar um pouco. Foi assim e isso não poderia ser mais mudado. Acordou pela manhã com uma disposição que há muito não apresentava. Voltou a ler sua revista preferida, profetizou algumas palavras de ânimo e mais uma vez saiu em busca de algo.

“Ela estava imóvel. Imóvel como o tempo até então. O ar parado, o sentimento de exagero e as condições mentais em que ele se encontrava eram ingredientes propícios para ver, mesmo que os olhos não registrassem. Andou mais um passos. Titubeou entre um e outro. Mas um misto de enfretamento e curiosidade lhe era mais claro naquele momento. E foi. Ou melhor, foi-se. Ou melhor, ainda ela havia ido, havia deixado aquele plano. E aquilo não era um corpo propriamente dito, era mais uma imagem... Apenas mais uma, se pode-se dizer assim. Apenas mais uma naquele quebra-cabeças que ela alimentava a passos largos. Mas nada que lhe fosse desconhecido, nada que lhe fosse novo.

Naquele instante pensou em seu genitor. Pensou em suas últimas palavras e na condição de tutor ao qual havia se posto. Pensou no que foi dito, no que ficou por entre as linhas e naquilo que nem dito havia sido. É era justamente esse dito – não – dito que lhe tirava a respiração. Nada, nada, nada. Tudo, tudo, tudo... ‘Que oportunismo’, pensou. Ou melhor, ‘que oportuno’. Não poderia então ser diferente. Ele estava decidido. Decidido em fazer o que já deveria ter sido feito desde sempre. Mas que lhe era bastante doloroso. Tinha que fazer e ponto. Conseqüências? Não, congruências. Nada poderia voltar ao seu devido lugar depois daquilo. E nada daquilo encontraria lugar em sua vida. Simples assim”.


Entrou no carro e seguiu em frente. Não sem antes engatar uma ré para manobrar.

Continua...


Anderson Mendes Fachina

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Dilaceração humana


Há alguns dias atrás, por conta de meu ofício, tive que encontrar um lugar onde pudesse dilacerar alguns papéis que seriam descartados. Procurei na cidade onde poderia fazer isso e encontrei uma cooperativa que recolhe e prepara materiais recicláveis para a venda. Então o material é recolhido nas ruas, separado e arrumado em blocos para venda a fábricas que reutilizam os materiais. Todo o dinheiro obtido com essa venda é repartido entre os membros da cooperativa, desde o catador mais comum até o motorista que efetua o transporte do material.

Assim sendo, tive que permanecer no local até que todos os meus papéis fossem dilacerados e isso tomou grande parte do meu dia. Acabei ficando na cooperativa por mais de seis horas. Neste tempo, fui conversando com a funcionária que me atendeu e efetuava o serviço que eu havia levado. Tratava-se de uma jovem de 27 anos, com feições bem marcadas pela difícil vida. Era uma pessoa bem humilde que, aos poucos, foi contando um pouco sobre sua vida. Ela disse ter três filhos, sendo que quando teve a caçula, teve um problema no parto e acabou internada por diversos dias na UTI, tendo que inclusive fazer fisioterapia para voltar a andar, motivo pelo qual ficou vários meses dependendo da cadeira de rodas.

Ela ainda contou sobre a vida difícil na cooperativa e o fato de ter ganhado apenas R$ 600,00 no mês de janeiro, justo o mês onde se tem a maior soma de contas para pagar. Falou ainda dos seus problemas com a inadimplência: “Mal a gente consegue pagar uma conta que está atrasada, já tem outra entrando com tudo”, disse.

Comentou ainda sobre os filhos e como os amava. Falou que ficava triste em ter que deixar a caçula na creche e como gostava de ficar o dia todo com eles nos finais de semana. Disse que eram crianças espertas e inteligentes e que era muito difícil conseguir comprar coisas boas para elas por conta de sua renda.

Falou que o marido não a apoiava em nada e que simplesmente não se preocupava nem com a casa, nem com as crianças: “Ele compra a comida, paga a energia e diz que este é o seu papel. Nunca se preocupa com as crianças, com os estudos delas. Chega em casa, troca de roupa e vai para o bar. A gente vai conhecendo as pessoas conforme vamos vivendo com elas. Se eu pudesse voltar atrás, não estaríamos juntos. E eu nem posso pensar em largar dele, pois não tenho condições de manter os meus filhos sozinha”.

Todo esse dia e o diálogo que tinha com essa jovem senhora iam me fazendo refletir sobre a minha própria vida e a das pessoas que ali trabalhavam. Conheci mais umas duas ou três pessoas ali, de histórias parecidas. Pessoas boas no trato, com uma simplicidade tão ressaltada, mas com a feição muito marcada pela vida.

Sem dúvida alguma, foi uma experiência muito marcante. Imagina que eu fui até o local de roupa social, sapato bem engraxado, gel no cabelo... Quando me dei conta, já estava todo sujo ajudando no serviço uma vez que eu não poderia sair dali sem terminar tudo. Lembrei de muita coisa que já passei na vida e de como às vezes tendemos a acreditar que o nosso problema é maior que o dos outros.

Essa jovem senhora, a qual eu passei mais de seis horas ao lado, conversou, contou sobre sua vida difícil e sempre, mas sempre mesmo, estava sorrindo. Apesar de contar sobre as dificuldades, em nenhum momento praguejou a vida ou sua condição. Aliás, ainda contava sobre seus planos com entusiasmo. Estava esperando a resposta de outro serviço numa fábrica, com melhores rendimentos e carteira assinada. E isso fazia seus olhos brilharem quando falava. Sempre tinha esperança no olhar.

Não vou ficar dizendo o quanto a gente reclama por coisas tão mesquinhas perto de uma vida difícil como dessa jovem senhora. É chover no molhado.

Anderson Mendes Fachina

domingo, 27 de janeiro de 2013

Da mihi castitatem et continentiam, sed noli modo


O episódio da noite das tormentas, como ele próprio definiu ainda não lhe saía da cabeça. E pensar que já se haviam passado vários dias, mas as cenas daquele fatídico dia ainda lhe eram claras como o dia, era uma coisa deveras pesada. Ele precisava tirar isso rapidamente de sua mente.

A cada minuto sua mente era alvejada com uma lembrança penosa. E entre uma conversa e outra, uma tarefa e outra, as coisas em sua mente pareciam ainda piorar. Remoer as coisas é o que destrói nossa mente, pensava. E em meio ao pensamento, as cenas, os lances, as lembranças. E assim sendo, as dores de cabeça eram constantes. Dormir então, nem pensar. Mas, contrariamente à presença de seus pares, era na solidão da noite em que seus pensamentos destrutivos eram mais bombardeados.

O entendimento da mente ainda é um campo que caminha a passos lentos. Não há muita lógica em certas coisas. Não há coisas em certas lógicas. Era então no silêncio das falas que seu pensamento fazia os melhores julgamentos. Mas era neste mesmo silêncio que as construções mentais também eram superdimensionadas. Ao mesmo tempo em que refletia melhor sobre o ocorrido, criava novas situações a partir da já famosa mola de pensamento: “e se?”. E naquela noite uma nova história foi criada nesse campo tão fértil.

“Já se passavam alguns minutos das nove horas da noite. Ele andava a passos largos sem olhar pra trás. Seu celular já havia tocado algumas vezes e ele nem se deu ao trabalho de ver quem poderia ser. A velocidade das passadas aumentava à medida que parecia estar mais próximo de sua parada. Mas os quarteirões pareciam se infindar. E os passos mais rápidos aumentavam ainda mais. Mas ele viu a porta. Ela estava lá. Chegou. Abriu. E entrou sem pensar em mais nada.
Mais uma porta e um lance de escada depois ele a avistou. Estava sentada lendo algo. Ele a chamou pelo nome. Ela não respondeu. Ele a chamou com mais firmeza. Mas não encontrou resposta. Tocou em seu ombro e a sacudiu. Ela estava imóvel...”

O sonho acordado lhe visualizou uma nova possibilidade que talvez se encaixasse perfeitamente na obra como um todo. Já eram quatro horas da manhã e ele ainda não havia dormido um minuto sequer.

Continua...

Anderson Mendes Fachina

domingo, 13 de janeiro de 2013

Supermemórias


Eu era muito pequeno e já andava contigo na garupa da bicicleta por toda a cidade, principalmente aos domingos pela manhã. Lembro de um short azul, uma camiseta amarelo claro e uma conga azul que eu usava na maioria de nossos passeios. Lembro-me da sensação de vento no rosto, do gostinho do sol e da sua companhia, que sempre era muito boa. Cruzávamos a pista sempre com atenção aos carros que ali passavam em alta velocidade. Naquela época a pista nem era duplicada, nem todas as ruas de nosso bairro eram asfaltadas, não existia cadeirinha de bicicleta e eu ia pra escola de mãos dadas com minha irmã. Outro tempo. Outro tempo que não volta mais. Outro tempo onde nossas brincadeiras eram inocentes, porém muito imaginativas, pois tínhamos nosso próprio mundo de fantasia.

E sair contigo de bicicleta aos domingos fazia parte deste mundo fantasioso. Andávamos meio que sem rumo, mesmo sabendo eu que haviam algumas paradas obrigatórias durante esse trajeto. E esses locais de parada sempre foram muito bem conhecidos por mim. Eu os freqüentava contigo desde pequenino e gostava da possibilidade de ganhar um doce, tomar um guaraná enquanto o senhor conversava e tomava uma cerveja. Era legal colecionar aqueles indiozinhos que vinham naqueles doces de banana açucarados. Eu tinha vários deles. Era legal também ganhar uma maria-mole com bexiga ou mesmo uma paçoca, um doce de leite... Eu sempre gostei de doce.

Às vezes eu ficava brincado com as bolhas na mesa de bilhar. Nem conseguia pegar o taco corretamente e, por mais que perguntasse, não entedia nunca pra que servia aquele giz azul ou porque a bola de número 15 só entrava na mesa quase no final do jogo. Porque todas as bolas podiam brincar e ela só entrava no final?

Ainda lembro... Ainda me lembro dos dias em que saímos a e chuva nos pegava no caminho. Se fosse necessário passávamos o dia todo fora de casa. Em algum momento nesses passeios, chegávamos à casa da vovó. E eu gostava de passar lá. Sempre fui o primo mais velho, nunca brinquei muito com os outros, mas gostava muito de ficar no meio dos meus tios. Gostava de brincar com o Marquinho, com o Cláudio e escutar as histórias do Zicão, do Paulo, do Chapéu e do vovô, além de tentar entender o que o meu tio Tonho dizia. Eu era muito criança, mas adorava estar no meio deles.

Meus domingos ao seu lado eram assim. Lembro-me como se fosse hoje. Lembro-me como se estivesse esperando seu chamado para sentar na garupa da bicicleta. Bons tempos. Quantas saudades de ti pai.

Hoje faz dois anos e eu ainda sinto saudade daquilo que não foi. Rezo sempre por ti. Um beijo.

Anderson Mendes Fachina

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Minhas sinceras desculpas


Minhas sinceras desculpas por ter sido tão infantil ao ponto de te usar como um simples objeto. Minhas sinceras desculpas por não ter enxergado o quão diferente e colorida era você no meio de todos aqueles tons de cinza. Minhas sinceras desculpas por entrar no seu mundo pela porta da frente, tomar de assalto toda a sua vida, mirar o horizonte e sonhar alto e, depois, sair pela porta dos fundos como um animal arredio.

Minhas sinceras desculpas pelo fracasso que se tornou nossa tentativa inexata em se fazer sermos dois. Minhas sinceras desculpas por aquela cena nonsense, quase surreal, de esmagamento daquilo que ainda nem tínhamos. Minhas sinceras desculpas por ser fraco, seco e distante.

Lembra aquele dia em que encontrei o seu mundo? Aquele passeio na praça deserta, o som quase de inaudível daquela noite calma, tranqüila. Lembra da hora em que te deixei em casa? Lembra da loucura, dos beijos, das palavras, dos olhares? Lembra?

Então... Eu esqueci. Esqueci que aquilo poderia ser verdadeiro. Esqueci de tentar entender tudo aquilo que se passava em minha vida. Não entendi. E não entendendo processei tudo errado. E nesse processo, você que mal tinha entrado, teve que sair. Ou melhor, eu saí. Saí de arrombo, numa só empreitada. Saí correndo, sem olhar pra trás.

É... Demorou... Mas eu olhei pra trás. Primeiro olhei de relance. Primeiro olhei sorrateiramente como quem sabe que olha com vergonha. Vergonha. Só isso. Mas mesmo nesse olhar meio que de lado eu percebi. Percebi que tudo havia se esvaído, tão rápido quanto a minha partida. Tão rápido quanto o meu raciocínio em perceber que meus atos não haviam sido corretos. Não demorou e sua vida já era outra.

Sua vida já era outra completamente diferente. E a minha, a mesma. Os mesmos problemas, a mesmice de sempre e a certeza da insatisfação. Apenas uma constatação mais aprofundada: eu tinha o pseudo-domínio, a falsa posse e eu sabia disso. Mas, na minha pequenez, era isso que me fundava naquele chão. Quão pequeno e mesquinho eu fui.

Minhas sinceras desculpas. Desculpas que talvez não lhe façam sentido. Desculpas que talvez nem lhe lembrem esse algo que existiu. Desculpas que talvez ficaram num tempo tão distante que não tenham mais razão de serem pedidas. Desculpas erradas no momento certo ou certas no momento errado.

Vem-me à cabeça aquele pequeno cachorro daquele filme besta do “Máskara”. Não sei por quê. A lembrança é tão lacônica quanto o pedido de desculpas. Sei lá. Mas, mais uma vez: Minhas sinceras desculpas.

Anderson Mendes Fachina