quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Dilaceração humana


Há alguns dias atrás, por conta de meu ofício, tive que encontrar um lugar onde pudesse dilacerar alguns papéis que seriam descartados. Procurei na cidade onde poderia fazer isso e encontrei uma cooperativa que recolhe e prepara materiais recicláveis para a venda. Então o material é recolhido nas ruas, separado e arrumado em blocos para venda a fábricas que reutilizam os materiais. Todo o dinheiro obtido com essa venda é repartido entre os membros da cooperativa, desde o catador mais comum até o motorista que efetua o transporte do material.

Assim sendo, tive que permanecer no local até que todos os meus papéis fossem dilacerados e isso tomou grande parte do meu dia. Acabei ficando na cooperativa por mais de seis horas. Neste tempo, fui conversando com a funcionária que me atendeu e efetuava o serviço que eu havia levado. Tratava-se de uma jovem de 27 anos, com feições bem marcadas pela difícil vida. Era uma pessoa bem humilde que, aos poucos, foi contando um pouco sobre sua vida. Ela disse ter três filhos, sendo que quando teve a caçula, teve um problema no parto e acabou internada por diversos dias na UTI, tendo que inclusive fazer fisioterapia para voltar a andar, motivo pelo qual ficou vários meses dependendo da cadeira de rodas.

Ela ainda contou sobre a vida difícil na cooperativa e o fato de ter ganhado apenas R$ 600,00 no mês de janeiro, justo o mês onde se tem a maior soma de contas para pagar. Falou ainda dos seus problemas com a inadimplência: “Mal a gente consegue pagar uma conta que está atrasada, já tem outra entrando com tudo”, disse.

Comentou ainda sobre os filhos e como os amava. Falou que ficava triste em ter que deixar a caçula na creche e como gostava de ficar o dia todo com eles nos finais de semana. Disse que eram crianças espertas e inteligentes e que era muito difícil conseguir comprar coisas boas para elas por conta de sua renda.

Falou que o marido não a apoiava em nada e que simplesmente não se preocupava nem com a casa, nem com as crianças: “Ele compra a comida, paga a energia e diz que este é o seu papel. Nunca se preocupa com as crianças, com os estudos delas. Chega em casa, troca de roupa e vai para o bar. A gente vai conhecendo as pessoas conforme vamos vivendo com elas. Se eu pudesse voltar atrás, não estaríamos juntos. E eu nem posso pensar em largar dele, pois não tenho condições de manter os meus filhos sozinha”.

Todo esse dia e o diálogo que tinha com essa jovem senhora iam me fazendo refletir sobre a minha própria vida e a das pessoas que ali trabalhavam. Conheci mais umas duas ou três pessoas ali, de histórias parecidas. Pessoas boas no trato, com uma simplicidade tão ressaltada, mas com a feição muito marcada pela vida.

Sem dúvida alguma, foi uma experiência muito marcante. Imagina que eu fui até o local de roupa social, sapato bem engraxado, gel no cabelo... Quando me dei conta, já estava todo sujo ajudando no serviço uma vez que eu não poderia sair dali sem terminar tudo. Lembrei de muita coisa que já passei na vida e de como às vezes tendemos a acreditar que o nosso problema é maior que o dos outros.

Essa jovem senhora, a qual eu passei mais de seis horas ao lado, conversou, contou sobre sua vida difícil e sempre, mas sempre mesmo, estava sorrindo. Apesar de contar sobre as dificuldades, em nenhum momento praguejou a vida ou sua condição. Aliás, ainda contava sobre seus planos com entusiasmo. Estava esperando a resposta de outro serviço numa fábrica, com melhores rendimentos e carteira assinada. E isso fazia seus olhos brilharem quando falava. Sempre tinha esperança no olhar.

Não vou ficar dizendo o quanto a gente reclama por coisas tão mesquinhas perto de uma vida difícil como dessa jovem senhora. É chover no molhado.

Anderson Mendes Fachina