Artigo - A importância do contos de fada nos anos iniciais do EF

A IMPORTÂNCIA DOS CONTOS DE FADAS NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL




Katyane Lima Sousa
Pedagoga formada pela Universidade de Franca
Pós graduada em Práticas de Letramento e Alfabetização - Universidade Federal São João del-Rei
Orientadora: Marília Carvalho Caetano Oliveira (Doutora em Linguística e Língua Portuguesa)

Resumo: O presente artigo visa discutir a importância dos contos de fadas nos anos iniciais do ensino fundamental. Para tanto, serão apresentadas sua origem, sua importância literária, a influência deste gênero como formação da identidade e personalidade da criança e sua percepção como eixo desencadeador para um trabalho sistemático dentro da sala de aula, que contribua no desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita. Para a execução deste trabalho, cuja natureza é bibliográfica, foram consultados autores como Bruno Bettelheim, que possui um estudo amplo em psicanálise sobre os contos de fada, além de outros nomes de nossa literatura, como Ana Maria Machado, e também documentos oficiais organizados pelo Ministério da Educação que orientam o trabalho em sala de aula.

Palavras chaves: Conto de fadas. Narrativas orais. Formação da identidade. Leitura e escrita.
 
1. INTRODUÇÃO
 
Desde a antiguidade, os contos são narrativas populares que perpassaram inicialmente pela tradição oral. São narrativas simples, porém de grande complexidade, pois abordam assuntos de conflitos cotidianos até filosóficos e psicológicos, geralmente abordados através da formação moral e dos pólos opostos como, por exemplo, a bondade e a maldade, a beleza e a feiúra entre outros. Segundo Bettelheim (2007):
 
Estas estórias falam ao ego em germinação e encorajam seu desenvolvimento, enquanto ao mesmo tempo aliviam pressões pré- conscientes e inconscientes [...] começam onde a criança realmente se encontra no seu ser psicológico e emocional. Falam de suas pressões internas graves de um modo que ela inconscientemente compreende. (BETTELHEIM, 2007, p.72)

A escrita foi a responsável pela difusão e aprimoramento literário dos contos tais como conhecemos atualmente. Para que as histórias populares adentrassem as cortes, os contadores faziam adaptações, acrescentavam detalhes descritivos e, assim, as narrativas passaram a ser melhor elaboradas, com maior refinamento da linguagem. Rego (1995) esclarece tal perspectiva:

Quando escrevemos, dispomos de maior tempo para refletir sobre a forma da mensagem que queremos transmitir. O produto final de uma produção escrita não contém, portanto, as hesitações, as sentenças incompletas que normalmente ocorrem quando as pessoas falam. Poderíamos dizer que a língua escrita é um produto linguístico mais depurado. (REGO, 1995, p.11).

No plano da escrita, não existe o apoio contextual como cenário, por isso é necessário explicitá-lo, há a necessidade de precisão, seleção das palavras, a fim de que mensagem não fique obscura, pois o interlocutor não estará lá para dar mais esclarecimentos caso falte alguma informação. Rego (1995, p.10) salienta que as “palavras funcionam como matéria–prima da criação artística” na literatura e que a língua escrita é uma fonte criativa em que “o uso da linguagem caracteriza-se, portanto, por ser mais sistemático e por estar imbuído de senso estético que efetivamente temos quando conversamos”.

Dentro desta lógica de ouvir narrativas orais e organizá-las na linguagem escrita, que desenvolveu este gênero literário, percebemos um simulacro deste contexto em sala de aula. As crianças, desde a educação infantil, são introduzidas ao mundo das narrativas dos contos de fadas. A partir dos conceitos referenciados por tais estórias, vão criando modos de inferência no meio social e assimilando questões específicas da linguagem escrita. Quando ingressam no ensino fundamental, todos os parâmetros de sistematização da aprendizagem podem ser permeados através desta base literária.

Assim sendo, o presente trabalho visa discorrer acerca dessa funcionalidade dos contos de fada como forma de mostrar o quão positivo pode ser esta abordagem para o desenvolvimento integral da criança e como a escola pode utilizar este gênero literário para que possa construir meios de desenvolver o letramento nos anos iniciais do ensino fundamental.
 
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
 
2.1 A origem dos contos de fadas

Desde os primórdios, os homens lançaram-se em narrativas no objetivo de transcender conhecimentos e valores. Nesta busca, tentavam vencer os anseios e os mistérios através da magia, sempre acima e em auxilio às deficiências humanas, conforme relata Alencar (2000):

Na Grécia Antiga, poemas épicos e festivais de teatros emprestavam corpo e alma a criaturas místicas. Na Idade Média, camponeses miseráveis sentavam-se à beira da fogueira para ouvir enredos maravilhosos sobre reis, rainhas, palácios e tesouros. E por breves momentos apossavam-se dos papéis principais - aqueles que jamais desempenhariam na vida real. Em sua catarse, derrotavam gigantes, desafiavam bruxas, descobriam a galinha dos ovos de ouro e conquistavam a felicidade eterna. Essas histórias chegaram aos ouvidos da corte, onde foram repetidas por menestréis para deleite das damas de fino trato e dos cavaleiros galanteadores. (ALENCAR, 2000, p. 44).

Dessa forma é que se desenvolveram a maior parte dos contos como conhecemos hoje. Como podemos perceber, eram contos narrados a partir e para toda a sociedade. Naquele momento não havia distinção entre faixas etárias e o conceito de criança era inexistente: viviam e eram tratadas como miniaturas de adultos. A esse respeito, Lajolo (2008, p. 23) alerta que “a noção de criança está condicionada à construção histórica de cada época, consequentemente, quando assumimos um conceito, por exemplo, de ‘literatura infantil’, é necessário retomar o que era infância naquele determinado momento”. Os enredos destas histórias eram envolvidos em cenas de violência, erotismo, seres animalescos, entre outras muitas fantasias, mas que mantinham um paralelo bem próximo do mundo real.

Dentro deste parâmetro literário, temos também como destaque o dinamarquês Hans Christian Andersen, considerado o verdadeiro Pai da Literatura Infantil, que, ao contrário dos escritores já citados, começa a criar os contos especialmente para as crianças, embasados na cultura popular e em sua criatividade. Suas estórias, apesar de apresentarem um desfecho otimista, nem sempre terminam com um final plenamente feliz.

A adaptação dos textos folclóricos surge como opção de fornecer às novas gerações acervo cultural com uma percepção de mundo. Nóbrega (2009, p.20) demonstra que os contos partem de uma organização simples e dinâmica, “mantém uma estrutura fixa, partem de um problema vinculado à realidade que desequilibra a tranqüilidade inicial, buscam soluções no plano da fantasia e necessitam de elementos mágicos para, enfim, trazer de volta a realidade”, possibilitando à criança interação com um modo bem próximo de seu modo de percepção do mundo.

Sendo assim, percebemos que Jacob e Wilhelm Grimm, pesquisadores alemães do inicio do século XIX, estavam realmente certos em resgatar as tradições orais de seu povo como expressão cultural. Germânicas ou não, tais narrativas desde sempre compreendem com sabedoria o modo como melhor solucionar os problemas cotidianos, utilizando a esperança e, principalmente, a imaginação.

2.2 A importância dos contos de fadas na formação da identidade

Os contos de fadas, dentro de suas raízes de conflitos e fantasias, permitem que a criança assimile e possa exteriorizar seus desejos, sejam eles bons ou maus.

Essas narrativas mostram o mundo, a vida em sociedade através da simbologia. Segundo Bettelheim (2007, p.67), “o conto de fadas procede de um modo conforme [...] a criança pensa e experimenta o mundo”.

Explicações de modo lógico, racional não são compreensíveis, para a criança, pois ainda lhe falta conhecimento e maturidade. Os conceitos de sociedade, de ciência e de mundo ainda lhe são abstratos, mantêm-se ainda através de pensamentos animistas, desta maneira, ela cria suas hipóteses fantasiosas para compreender seus sentimentos e o mundo que a cerca. Os contos lhe servem de auxílio, teoria que lhe subsidia suporte para resolver seus conflitos internos e garante criatividade e autonomia na resolução dos problemas cotidianos.

A atemporalidade (“Era uma vez”), a ausência de delimitação dos personagens, compensada por adjetivos (“Branca de Neve, O Patinho Feio”), a unidimensionalidade da personalidade (bruxa sempre má, princesa bonita e boa) e, principalmente, o desfecho satisfatório após a superação de vários obstáculos por parte do herói, fazem com que este gênero literário facilite projeções por parte da criança, dando-lhe sensação de prazer e alívio. Para Bettelheim (2007), tais elementos subsidiam os elementos da narrativa, sendo possível para a criança transitar do mundo simbólico para a realidade. As narrativas seriam uma ponte e por esta razão são consideradas solucionadoras de conflitos:
 
A criança que está familiarizada com os contos de fadas percebe que estes lhe falam na linguagem dos símbolos e não na realidade cotidiana. O conto de fadas nos transmite desde o inicio, ao longo da trama e no final, que aquilo que é narrado não são fatos tangíveis ou pessoas e lugares reais. Quanto à própria criança, os acontecimentos reais se tornam importantes pelo significado simbólico que lhes atribui, ou que neles encontra. (BETTELHEIM, 2007, p.90)

Dessa forma, não é justificável a crença que tais histórias deixariam as crianças estagnadas no mundo da magia. Cada vez que uma criança escolhe um conto e com ele interage incessantemente, está apenas refletindo e ordenando internamente seus conflitos e desenvolvendo, de modo concreto a ela, parâmetros de sua identidade. Vale ressaltar que as interpretações sobre os contos são pessoais e não cabe a nenhum adulto intervir, já que o mesmo poderia lhe tirar o sentido, pois, como já comentado, a racionalidade ainda não é por ela considerada.

A esse respeito, Nóbrega (2009, p. 25) explica que “a fantasia preenche as enormes lacunas na compreensão de uma criança”. Isso faz com que possa criar e desenvolver estratégias de resolução, frente a um pensamento sempre otimista, dominando seus temores.

A recuperação dos personagens dos contos também lhe apraz ao sentido de justiça, criando um parâmetro nas entrelinhas do que é apropriado em termos de conduta, sem exacerbar e discriminar nesse aspecto, como nas fábulas. Os contos estabelecem ao herói a felicidade, enquanto o malfeitor acaba sendo castigado pelas consequências de seus atos. O escape dos personagens das mãos dos malfeitores, por exemplo, a fuga de Branca de Neve do castelo, diz respeito ao período de desenvolvimento da independência, ao crescimento. Betthelheim (2007, p. 210) ilustra tal referência na vida da criança: “o escape físico da criança do domínio dos pais é seguido por um extenso período de recuperação, de aquisição de maturidade”, o que, segundo o mesmo autor, representa a angústia da separação e da solidão, mas, para tal, são criadas situações em que surgem novos personagens que lhe auxiliam. No exemplo da Branca de Neve, os animais da floresta e os sete anões auxiliam a menina após a fuga do castelo, mas a personagem é imbuída de novas responsabilidades, como cuidar da casa, ou seja, recupera um lar, mas necessita de mais maturidade para sobreviver.

Mas é o consolo final que possibilita que este gênero literário sobressaia como elemento importante de desenvolvimento na formação da identidade. Geralmente o que possibilita a recuperação é, enfim, que o seu consolo advém de quesitos próprios do corpo do herói, como a beleza de Branca de Neve, as tranças, no caso de Rapunzel, os pequenos pés em Cinderela, entre outros:
 
O consolo é o maior serviço que os contos de fadas podem prestar à criança: a confiança em que, apesar de todas as tribulações que tem de sofrer [...], ela terá sucesso, como as forças do mal serão extintas e nunca mais ameaçarão sua paz de espírito. (BETTELHEIM, 2007, p. 207).

Os contos de fadas, de maneira simbólica e prazerosa, reproduzem as dificuldades, os complexos das crianças, de maneira que é possível elas se projetarem nessas narrativas, fortalecendo e solucionando suas experiências internas. O autoconhecimento e uma postura otimista diante dos problemas cotidianos, vivenciados por meio dos contos, coloca-as frente ao desenvolvimento de uma pessoa coesa no desafio de viver.
 
2.3 Estratégias de utilização dos contos de fadas no contexto escolar
 
Este gênero literário, desde suas primeiras formulações, foi gerado a partir da oralidade e toda transmissão até Perrault, que iniciou seus primeiros registros, assim sobreviveu. Na Antiguidade, mais tarde Jesus Cristo, entre outros sábios, já sabiam que, quando pretendemos ensinar algo, o modo mais eficaz se faz pelas estórias. O ato de contar estórias sempre foi sublime, é assim que as pessoas se aculturam e conseguem interagir com sua transcendência. Machado (2002) salienta que os contos são narrativas culturais e, portanto,
 
Literatura popular e que inicialmente era oral – mas, de qualquer forma, literatura. Uma manifestação artística por meio das palavras. Uma forma de produção cultural que tem seu próprio sentido, lentamente elaborado pelos diferentes elementos da narrativa, à medida que a história se desenrola e se encaminha para seu final, consolidando seu significado profundo. (MACHADO, 2002, p. 74-75).
 
Sendo assim, um dos modos mais eficazes e completos de efetivar o contato da criança com os contos de fadas é por meio da fruição do texto narrado por um adulto leitor. A simples narrativa é a mais tradicional e antiga forma de narração oral, sem recursos visuais, dependo apenas de suas expressões corporais. Sem recursos visuais, a criança pode construir seu espaço, seus personagens, como demandam seus sentimentos naquele momento. A atenção da mesma deve estar exclusivamente voltada ao narrador e ao enredo da história. É necessária a não substituição de termos ou expressões desconhecidas, mas acrescentar sinônimos durante a narração. Dessa forma, a criança passa também a ser introduzida nos recursos linguísticos utilizados na língua escrita, aumentando seu vocabulário.

A premissa deste momento deve ser unicamente o prazer pela “experiência compartilhada de fruição do conto de fadas” (BETTELHEIM, 2007, p.217). Outros objetivos, como intenções didáticas ou interventivas, são secundárias e não devem se sobrepor aos processos interpessoais que começam a se instalar.

A narração, segundo Bettelheim (2007), permite maior flexibilidade e contato intrapessoal, aumentado até mesmo os laços afetivos entre seus parceiros e a compreensão do texto. O adulto narrador pode e deve demonstrar emoção, dar vozes, sentidos aos acontecimentos expressos e, nestes momentos, “apreciar integralmente os sentimentos e as reações das crianças”. (BETTELHEIM, 2007, p.219).

A escolha do livro deve ser realizada pela criança, uma vez que ela intuitivamente consegue perceber qual proposta narrativa lhe faz mais sentido naquele momento. O adulto leitor deve ter empatia pela escolha, devendo apresentar de modo sensível e interativo o enredo. Deve-se ressaltar, porém, que a interpretação, os significados dos textos são subjetivos e seus efeitos psicanalíticos são internos, simbólicos, não devendo nunca os adultos interferirem nos conflitos íntimos da criança. A esse respeito, Machado (2002) afirma que
 
Tudo é possível no encontro do leitor com o texto literário, porque em literatura esse pacto fica muito claro. Autor/contador e leitor ouvinte sabem disso perfeitamente. Naquele espaço que estão compartilhando a situação de leitura, a linguagem é usada de forma bem diferente de seu emprego quotidiano para situações concretas. Situa-se em outra esfera, significa de modo diferente. [...] A linguagem poética é simbólica, colorida, metafórica. (MACHADO, 2002, p. 78).
 
Por serem os contos de fadas textos tão complexos em suas representações simbólicas, seria errôneo extrair, modificar ou realizar adaptações neste primeiro momento. As características elementares do gênero só podem ser encontradas em seus textos integrais. Seus componentes literários, como apresentados anteriormente, são encadeados de modo a permitir as interações mais profundas. “Só se pode apreciar o verdadeiro significado e o verdadeiro impacto de um conto de fadas e experimentar seu encantamento por intermédio da história em sua forma original” (BETTELHEIM, 1980, p. 29), pois a lógica presente em tais inscritos foi construída por autores, com base em contos populares milenares que resguardaram nessas narrativas elementos que nos possibilitam a reflexão sobre a existência humana, essencial na formação da identidade e personalidade.

Os textos contemporâneos, advindos da intertextualidade do conto de fadas, são interessantes, até mesmo como uma abordagem crítica e pessoal de novos autores. A criança também deve ter acesso a essa diversidade literária, porém, como reforça Machado (2002, p.81), “é como uma brincadeira. Não dá para brincar de ‘pequeno construtor’ com quem nunca viu uma casa”, por isso a necessidade primeira é conhecer os clássicos em seu modo tradicional.

O ato de contar e ouvir estórias é elemento humanizador primordial no desenvolvimento integral da criança e por isso ele é proposto em documentos oficiais do governo que norteiam situações didáticas em sala de aula. Nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), são elencadas várias razões para a leitura realizada pelo professor, entre elas podemos destacar a “vivência de emoções, o exercício da fantasia e da imaginação” (p.42), que vêm ao encontro dos propósitos que desejamos com o gênero que estamos abordando. Tal ação também é meio para que se alcancem alguns dos objetivos gerais de língua portuguesa para o ensino fundamental como:
 
Valorizar a leitura como fonte de informação, via de acesso aos mundos criados pela literatura e possibilidade de fruição estética, sendo capazes de recorrer aos materiais escritos em função de diferentes objetivos; [...] Valer-se da linguagem para melhorar a qualidade de suas relações pessoais, sendo capazes de expressar seus sentimentos, experiências, idéias e opiniões, bem como de acolher, interpretar e considerar os dos outros, contrapondo-os quando necessário. (BRASIL, 1997, p.33).

A leitura, tanto em casa como na escola, pode ser realizada diariamente. Assim a consolidação de pessoas mais criativas, sensitivas e até mesmo críticas se torna cada vez mais propensa e satisfatória em uma sociedade mais humana e harmoniosa.

A literatura é um bem cultural e deve estar presente desde os primeiros anos de vida, ou seja, precisa partir de um adulto leitor que a introduza neste mundo fascinante, fonte de prazer, de ressignificações que desenvolvem recursos para a construção da identidade e, como se não fossem suficientes tais proposições, motiva-as e possibilita a inserção no mundo letrado, construindo elos para a alfabetização.

A alfabetização e o letramento são sempre tópicos de discussão quando se trata de êxito na educação formal. É através da linguagem escrita que temos o conhecimento científico acumulado através de séculos. Para estar apto a adquirir e exercitar até mesmo as funções de cidadão, é necessário desenvolver tais habilidades.

Segundo Soares (2003), a alfabetização é “um processo técnico de aquisição do sistema convencional de uma escrita alfabética e ortográfica” (p.11) e letramento seria “capacidade de utilizar a técnica nas práticas sociais que envolvem a língua escrita” (p.14). A mesma autora defende que, embora haja especificidades de cada termo, essas proposições são indissociáveis, ou seja, são dependentes quanto ao processo de aprendizagem bem como ao uso eficiente da técnica e o uso efetivo na sociedade.

Diante destes aspectos, torna-se fundamental o uso da literatura infantil dentro da escola e na família, já que as estórias são meios de propiciar, aproximar a criança da linguagem escrita, para que, aos poucos, possa interagir, de forma apropriada, com os recursos da língua escrita. Os textos didáticos, preparados especificamente para o desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita, geralmente são empobrecidos em valor literário, em que pouco ou nada têm de referência com o letramento, ficam embasados nas especificidades da alfabetização. Para Bettelheim (2007),
 
A aquisição de habilidades, inclusive a de ler, fica destituída de valor quando o que aprendeu a ler não acrescenta nada de importante a nossa vida. [...] Para que uma história realmente prenda a atenção da criança, deve entretê-la e despertar a sua curiosidade. Contudo, para enriquecer sua vida, deve-se estimular-lhe a imaginação: ajudá-la a desenvolver seu intelecto e a tornar claras suas emoções; estar em harmonia com suas ansiedades e sugerir soluções para os problemas que a perturbam. (BETTELHEIM, 2007, p.11).

O conto de fadas consegue assegurar todas estas vertentes expostas pelo autor, já que se trata de um gênero que, ao longo de sua história, tornou-se um clássico, pois narrado através de um contexto simbólico, traduz os conflitos humanos e mantém qualidade em sua linguagem.

Além do teor psicanalítico já explorado neste artigo, entendemos que se a criança se envolve nestas narrações, nada melhor que usá-las posteriormente como base para projetos de leitura e escrita dentro de sala de aula, nos quais trataremos de funções do mundo da escrita a partir do conhecimento prévio da criança, intermediados pelo prazer, pelo lúdico, dando–lhe respostas aos seus anseios e podendo expressar-se através da simbologia, do mesmo modo como compreende o mundo. Lajolo (2008, p.128) argumenta que a literatura é uma forma de interação íntima, exercício inclusive de cidadania, em que a criança pode: “apossar-se da linguagem literária, alfabetizar-se nela, tornar-se seu usuário competente, mesmo que nunca vá escrever um livro: mas porque precisa ler muito”. A literatura seria a porta de entrada para a criatividade e o conhecimento.

Ao trazer o conto para dentro da sala de aula, este não pode ser visto como um grande banco de palavras que estarão ali para ser matéria-prima da alfabetização. As premissas da alfabetização estarão sempre posteriores ao aprofundamento intrínseco e depois de esgotadas as abordagens interpretativas a que o texto aspira. A interpretação que elencamos aqui não trata daquela abordagem tradicional, como fichas de leitura, questionários com perguntas óbvias e com respostas restritas aos aspectos descritivos do texto, mas sim de um aprofundamento subjetivo.

A esfera técnica, dos elementos que compõem o texto, ou seja, a palavra, a relação grafema-fonema, enfim, a alfabetização, pode ser desenvolvida, conforme sugere Rego (1995, p.66), através de “palavras geradoras escolhidas dos textos que vêm sendo lidos para as crianças”. O trabalho com alfabetos móveis, os agrupamentos produtivos, os quais unem educandos com diferentes níveis de aprendizados, fazem com que as crianças repensem suas hipóteses sobre a escrita, avançando-as. O conhecimento é construído pelo educando, que vai refeltindo sobre a escrita, porém é essencial neste trajeto percorrido a intervenção precisa do professor, organizando meios que desafiem o avançar nestas hipóteses.

Jogos, textos curtos, como cantigas, inseridas ao contexto trabalhado, como, por exemplo, a música que Chapeuzinho canta em seu percurso “pela estrada afora eu vou bem sozinha...”, leituras que envolvam rimas, podem ser introduzidas como pseudoleituras, através da quais as crianças poderão fazer relações entre grafema e fonema.

A aquisição da habilidade de leitura e a progressiva independência neste quesito é que trarão avanços cada vez mais significativos na escrita, por isso Rego (1995) argumenta:

O estímulo à leitura pode começar pelos livros contendo textos curtos cujas histórias já são conhecidas pelas crianças. Contextualizando as leituras iniciais, estamos oferecendo à criança um suporte para que ela consiga descobrir novas correspondências som-grafia. Ao dominarem os mecanismos da leitura, as próprias crianças buscarão a leitura de novos livros. (REGO, 1995, p. 69)

Neste momento da aprendizagem, com foco nestas aquisições linguísticas, quando a estória não será contada com fim primordial de fruição, as adaptações dos contos podem ser um recurso, pois sabemos que os textos originais são longos, podendo ser cansativos às crianças, quando estas ainda não possuem o desenvolvimento de leitura consolidado. Porém elas mesmas notarão que nem todos os acontecimentos estão ali e farão suas críticas, isto é, se os textos em suas formas completas foram devidamente difundidos, e conforme forem consolidando suas habilidades.

Uma abordagem mais dinâmica inicia através de uma roda de conversa, relações do contexto literário com a realidade dos educandos, considerando que os contos de fadas sempre retratam aspectos importantes a serem discutidos. Uma sugestão interessante também é a transposição do texto literário ao imagético, já que as possibilidades pictóricas enriquecem, além de serem uma forma de linguagem.

A possibilidade de ir e vir através do simbólico deste gênero faz com que se criem novas abordagens seguindo a mesma essência da trama. Essas novas roupagens, depois de se conhecer os textos tradicionais, devem estar à disposição dos educandos. Para Romão; Pacífico (2006, p. 31), “a história é tecida por fios significativos que se entrelaçam formando um todo de sentido e é desse entrelaçamento que surge a intertextualidade”. Essa gama de gêneros e linguagens diferenciadas é que irá favorecer a diversidade textual das crianças, garantindo a estas “textos da ordem de narrar, relatar, expor e argumentar” (BRASIL, 2007, p.72). Essas diferentes formas de usar a língua escrita, correspondentes aos seus usos em sociedade, trabalhados de um modo lúdico e inseridas no imaginário infantil, fazem sentido à criança, pois, neste contexto, ela consegue criar meios para expressar suas opiniões e sentimentos.

Exemplos de trabalhos didáticos usando estes recursos são as coletâneas de textos. Inicialmente deve ser usado um texto original, Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, dos irmãos Grimm, e depois ir acrescentando novas versões, como a leitura poética de Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque, Chapeuzinho Verde, de Augusta Faro, entre outros.

As transposições de gênero, como atividade na produção de textos, também são interessantes, como, por exemplo, a produção de uma carta de agradecimento ao caçador, coletâneas de receitas de bolos e guloseimas que poderiam estar na cesta de Chapeuzinho, a notícia do fato, retratada em um jornal, entre outras mil possibilidades. Romão; Pacífico (2006, p. 96) recomendam essas releituras: “a escola deveria exercitar a leitura polissêmica, motivando os leitores a descobrir as outras possíveis leituras de um texto, transformando o ato de ler em uma atividade agradável, criativa, interessante e culturalmente produtiva”.

Vale ressaltar que as crianças que estão ingressando no universo da linguagem escrita devem ser expostas sempre a bons textos, para que se apropriem das características e finalidades de cada gênero, estabelecendo diferenças entre a linguagem oral e escrita assim como por que e para quem se escreve e sua forma de organização. Os primeiros textos devem ser produzidos coletivamente e serem embasados em bons suportes. Foucambert apud Brasil (2007, p.94) afirma que “na fase de aprendizado, o meio deve propiciar à criança toda ajuda para utilizar textos ‘verdadeiros’ e não simplificar os textos para adaptá-los às possibilidades atuais do aprendiz”, ou seja, as interações, as conversas entre o leitor experiente, professor, e o educando vão favorecendo a apropriação dos recursos da língua escrita, mesmo que aos olhos do leitor o texto proposto esteja além de seus conhecimentos.

Percebemos, então, que a audição das histórias dos contos e até mesmo outros textos literários, torna-se ferramenta para fortalecimento das estruturas internas na formação do indivíduo bem como insere a criança, de modo dinâmico, no mundo da linguagem escrita, e essa criança, ao perceber que pode através de livros percorrer espaços mágicos, é motivada a interagir com mais proximidade do mundo letrado.

As formas didáticas e criativas de consolidar essas fantasias fazem com que as crianças enxerguem a escrita como uma das formas de expressão, assim a aprendizagem da leitura e da escrita passa a cumprir um de seus desafios: desenvolver indivíduos ativos, cidadãos leitores. Segundo Lajolo (2000),
 
Lê-se para entender o mundo, para viver melhor. Em nossa cultura, quanto mais abrangente a concepção de mundo e de vida, mais intensamente se lê, numa espiral quase sem fim, que pode e deve começar na escola, mas não pode (nem costuma) encerrar-se nela. (LAJOLO, 2000, p.7)
 
Afinal, esta é uma das funções da escola: formar integralmente indivíduos capazes de interagir socialmente de forma crítico-reflexiva, capazes de usufruir e desenvolver os conhecimentos que vêm sendo acumulados em busca de uma sociedade mais digna.
 
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após todo esse apanhado sobre o mundo dos contos de fadas, o que realmente fica é a necessidade urgente de resgatar tais estórias para a continuidade de nossa cultura, para a formação de indivíduos mais fortalecidos e otimistas e para uma prática pedagógica mais próxima dos anseios e da linguagem de nossos educandos.

Inserir a literatura, em destaque os clássicos infantis, é embasar os pequenos alunos de um estilo de linguagem que será relevante para seu êxito escolar, ou melhor, desenvolverá habilidades para que usufruam textos cada vez mais complexos.

A dinâmica pedagógica aplicada deve ser bem planejada, desafiante e principalmente deve utilizar os textos em seu teor mais profundo, isto é, o texto literário não deve ser encarado como elemento didático, pois seu objetivo, como vimos no decorrer do trabalho, é humanitário, pois trata de subjetividades. Porém convém ressaltar que as construções linguísticas tornam-se sempre mais interessantes quando o contexto para essas aprendizagens advém desses textos.

Afinal, este é um dos desafios mais pertinentes da educação contemporânea: alfabetizar e letrar de forma concomitante, sem que nenhumas das peculiaridades desses termos sejam exacerbadas. Já que dentro da sociedade ativa, estes elementos agem de forma consensual, o ato de decodificar autonomamente compreende também produzir e compartilhar textos socialmente, numa atitude que torna o indivíduo apto a usufruir seus direitos como cidadão.

Dentre as grandes vantagens da inclusão difundidas pelo gênero dos contos de fadas, podemos elencar, conforme proposto por Coelho (2008, p. 130): “a consciência de mundo, a autoconsciência eu-outro, a consciência crítica, o conhecimento como resultado de informações organizadas, a importância da palavra e a construção do bom leitor”.

Como educadores, devemos estar preparados para usar, de maneira positiva, toda a literatura clássica que faz parte da cultura mundial e que, reconhecidamente, traz subsídios importantíssimos para o engrandecimento da criança como ser humano pensante e atuante dentro de um mundo não ficcional que se cria a partir do conhecimento e construção de seu próprio ser. Os contos de fada são, então, tudo o que há de mais próximo do início desta construção de forma plena, completa.
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 
ALENCAR, Marcelo. Quem quiser que conte outra. Educação. São Paulo: Segmento. Ano 26, nº 228. p. 42-54, abr 2000.
 
SOARES, Magda. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de Educação, Belo Horizonte, nº25, p.5-17, jan/fev/mar/abr, 2004.
 
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Trad. Arlene Caetano. São Paulo: Paz e Terra, 2007.
 
BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa / Secretaria de Educação Fundamenta. Brasília, 1997.
 
BRASIL, Ministério da Educação. Ensino Fundamental de nove anos: Orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade / Secretaria de Educação Básica. Brasília, 2007.
 
COELHO, Nelly Novaes. O Conto de fadas: símbolos – mitos – arquétipos. São Paulo: Paulinas, 2008.
 
LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Editora Ática, 2008.
 
MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
 
NÓBREGA, Lyéde Ruggero de Barros. Educar com Contos de Fadas: Vinculo entre a realidade e fantasia. São Paulo: Mundo Mirim, 2009.
 
REGO, Lúcia Lins Browne. Literatura infantil: uma nova perspectiva da alfabetização na pré-escola. São Paulo: FTD, 1995.

ROMÃO, Lucilia Maria Sousa; PACÍFICO, Soraya Maria Romano. Era uma vez outra história: Leitura e interpretação na sala de aula. São Paulo: DCl, 2006.