sábado, 4 de junho de 2011

Velório irlandês...

Oscar Wilde
Os irlandeses me fascinam, apesar de eu nunca ter conhecido nenhum, pessoalmente. No entanto, a história do país, a religiosidade, o folclore, a arte, o amor ao futebol e às festas (regadas a muita bebida, claro, sobretudo a boa e velha cerveja), tornam esse o povo europeu mais próximo a nós, brasileiros, mais ainda que os portugueses que nos colonizaram.

Irlandeses misturam religião a superstição, amam a família em meio a brigas e discussões homéricas, se embebedam e ficam sentimentais, ouvindo canções de amor melancólicas... Seus intelectuais são irônicos e inflamados em seus discursos, Wilde, ah, Wilde... Seus poetas, líricos ao extremo, W.B. Yeats, tantos mais. Música, rock n’roll com alma, U2, Van Morrison... Meu Morrissey, inglês que não nega as origens, “Irish blood, english heart”.

No século XIX, a imigração irlandesa para os EUA foi maciça, motivada pela grande fome da década de 1840, a famosa escassez agrária do produto base da alimentação no país, as batatas.

A tão falada ética protestante, econômica em gestos e afetos, comedida desde o púlpito de pregação rígida até o lar de vida austera, se viu, de repente, em redutos como São Francisco, Nova York e Nova Orleans, confrontada à fé católica, fervorosa em suas demonstrações, consoante à exuberância de um povo apaixonado pela vida, flamejante como as ruivas madeixas de seus cabelos celtas.

Segundo diversos relatos, os velórios irlandeses sempre foram dignos de choque para qualquer anglo-saxão temente a Deus. Choro e reminiscências convivendo com piadas e risos, e várias garrafas passando de mão em mão, não tão discretamente como seria de esperar na ocasião. Noites a velar os mortos, que se convertiam, involuntariamente, em celebração dos vivos, e da vida... Nada taciturnos, os velórios irlandeses, segundo consta, mais ainda na cidade de Nova Orleans, berço do jazz, no qual os cortejos fúnebres contavam quase sempre com uma banda de música. Ainda hoje persiste o costume.

Essa semana, o falecimento de uma tia me fez lembrar as impressões que, quando criança, a morte me causava. Sim, amigos, embora brasileiros natos, minha família praticava à perfeição a arte do velório irlandês.

Lembro que chegava a notícia da morte de um parente, dada sem cerimônia na frente das crianças. Alguns, mais velhos e mais distantes, eu nem mesmo conhecia, mas tocava ir até onde se dava o velório, o que às vezes significava deslocamento para uma cidade próxima, ou mesmo distante. Mas fazia-se questão de largar tudo, e ir ter a essas reuniões familiares.

Eu me lembro que sempre tinha um frio na barriga estranho ao saber que morrera alguém, porque tratava-se do grande mistério, como seria, o que se sentiria, haveria algo depois? Eu em criança já não tinha fé, aquela história de ir pro Céu nunca me disse nada... Mas após o choque inicial, vinha uma excitação muito de criança, mesmo... Algo novo, quebra da rotina. Iria ver os primos e tios e tias, congraçamento familiar mesmo, apesar de saber que haveria uma tristeza como pano de fundo.

E era bem assim, chegar, ir até o caixão, dar uma olhada respeitosa, abraçar os mais próximos do morto ou morta, enfim... E depois ir ter com as pessoas que não via há algum tempo, as crianças brincando ao redor, os adultos bebendo, as mulheres fazendo comida na cozinha, enquanto o choro, discreto ou não, se dava na sala, porque velavam-se os mortos em casa, então, ao longo de toda a noite. E aí haja assunto e cachaça pra aquecer, e as crianças só dormiam muito, muito tarde, nessas ocasiões. Daí que os rituais da morte e sepultamento, para a criança que eu fui, comportavam mesmo elementos de tristeza e celebração, via adultos chorando, o que me assustava um pouco e conferia peso ao mistério, mas encontrava todos da família juntos, o que me dava um senso de pertencimento, um cerco de carinho e positividade.

Hoje, como pude ver de novo, é tudo mais rápido, impessoal, profissional, nada de velórios em casa, e ninguém perde noites a rememorar o que passou junto àquela pessoa que deixa esse mundo... Ninguém conta fatos engraçados que passou junto à tia, primo, avô ou irmão de quem se despede, sem direito a riso, que não é de bom tom... Não há tempo e nem disposição, e, por favor, vamos poupar as crianças de um momento tão deprimente.

Nada mais de morte como recordação agridoce de quem se vai, como celebração da vida de quem fica, pra fazer da dor memória, tão bonita como pode ser uma vida rica, ainda que marque ali seu fim.

Tive um pedacinho disso pilheriando com minha irmã, “olha, quando eu morrer acho bom você chorar muito, mas com umas cachaças na cabeça, pra ajudar...”. “É, que merda, aqui só tem café...”.

Bons irlandeses e brasileiros das antigas, quero sair desse mundo como vocês... Quem me respeita que carregue feliz minha memória, desde meu derradeiro momento, como aprendi em criança.

Cristina dos Santos Monteiro

Nenhum comentário:

Postar um comentário